“Bunda”, “carimbo”, “cochilar”: a influência africana na língua portuguesa

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O português moderno incorporou muitas palavras de origem africana no seu léxico – exemplos são “bunda”, “carimbo” ou “moleque” na língua brasileira. Algo que nem nos próprios países africanos é muito conhecido.

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Menino   morador do Quilombo do Kalunga e descendente dos escravos africanos no   Brasil - parte da herança cultural deles é a palavra portuguesa

 Menino morador do Quilombo
do Kalunga e  descendente dos
escravos africanos no Brasil -
parte da herança cultural deles
é a palavra "moleque" (menino)

Almofada, alface, alcatifa – três exemplos da influência árabe no português. Depois de vários séculos de domínio muçulmano em Portugal, os mouros deixaram muitas palavras na língua portuguesa. Isto é bem conhecido, como também a origem latina do português que remonta ao Império Romano. Ao contrário pouco se sabe sobre as influências africanas na língua portuguesa.

Rosa  Cunha-Henckel ensina português nas universidades de Jena e de Berlim (FU  - Freie Universität Berlin)

Rosa  Cunha-Henckel ensina
português nas universidades
 de Jena e de Berlim
(FU - Freie Universität Berlin)

Quem estudou a influência africana no português é a investigadora brasileira Rosa Alice Cunha-Henckel. Ela trabalha na Universidade Livre de Berlim (FU Berlin) e na Universidade de Jena, ambas no Leste da Alemanha, e escreveu o seu doutoramento sobre a influência das línguas bantu de Angola no português do Brasil.

Johannes Beck conversou com ela à margem do encontro anual da DASP Sociedade Alemã para os Países Africanos de Língua Portuguesa (Deutsche Gesellschaft für die Afrikanischen Staaten Portugiesischer Sprache), em Berlim.

Deixem-se surpreender com as influências africanas na língua portuguesa!

A influência africana na língua do Brasil

Entrevista com Margarida Petter, professora de Linguística da Universidade de São Paulo, especialista em Linguística Africana e uma das organizadoras do livro, AFRICA NO BRASIL: A FORMAÇAO DA LINGUA PORTUGUESA.

Estudar o encontro do português com línguas, povos e culturas africanas e indígenas é fundamental para a compreensão do chamado português brasileiro. ‘África no Brasil’ tem por objetivo identificar os traços lingüísticos atribuídos ao contato do português com as línguas africanas que aqui aportaram no período da colonização. As palavras de origem africana que se perpetuaram no território brasileiro constituem uma maneira de conceituar e categorizar a realidade. É isso que este livro demonstra através da abordagem de questões que ajudam a entender melhor a formação do português brasileiro, como a apropriação do léxico de origem africana, a contribuição semântica no vocabulário, o exame da sintaxe e outros processos lingüísticos. Mais que um livro de lingüística, esta obra revela um sentimento de profundo respeito pelos povos africanos e pelas suas línguas, cristalizações de sua maneira de ver o mundo.

Ouça a entrevista:

Um Brasil além-mar com “feijoadá” e “jeitinho sociológico”

Por Maria da Paz Trefaut, de São Paulo

Que tipo de cultura produziram os ex-escravos que retornaram do Brasil para a África no século 19, assim que conquistaram a liberdade? Ao contrário daqui, onde viviam na senzala, essas populações se tornaram influentes e prósperas do outro lado do Atlântico. Radicadas em vários países, mas especialmente na Costa Ocidental, os descendentes dos antigos escravos mantiveram o apego a tradições brasileiras que cultivam até hoje: ainda cantam samba, comem “feijoadá” (pronuncia-se com o acento agudo), fazem desfiles de carnaval e torcem pelo Brasil na Copa do Mundo.
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O pesquisador Milton Guran: ” único exemplo de uma identidade calcada
na cultura brasileira longe de nossas fronteiras”

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O tema, que não chega a ser muito falado por aqui, desperta curiosidade crescente. Prova disso é o seminário “Back to África: Afro-Brazilian Returnee and their Communities” (De volta para a África: os afro-brasileiros retornados e suas comunidades), que aconteceu esta semana em Johanesburgo, na África do Sul. No encontro, promovido pelo Centre of Advanced Studies in African Society, estiveram reunidos antropólogos e historiadores de vários países e foram apresentados filmes e documentários produzidos no Brasil. Um dos conferencistas foi o antropólogo Milton Guran, pesquisador associado do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense, estudioso dessas populações desde a década de 1990. Guran, que viaja para o Benim quase todos os anos, escolheu o assunto como tema da tese de doutorado que defendeu na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris.

Na África, os ex-escravos que voltaram passaram a ser chamados de “agudás”, palavra do vocabulário iorubá. Autor do livro “Agudás, os brasileiros do Benim” – editora Nova Fronteira -, o antropólogo descobriu em suas pesquisas que atualmente há cerca de 400 sobrenomes luso-brasileiros no país. São as famílias Silva, Souza, Freitas ou Domingos, que ao retornarem ao seu continente foram responsáveis pelas primeiras construções de alvenaria e levaram na bagagem o catolicismo. Provenientes de diversas etnias, eles tinham em comum o passado vivido no Brasil, uma maneira de ser distinta e uma qualificação profissional. Reincorporados à sociedade como hábeis artesãos ou comerciantes instruídos, consideravam “selvagens” os nativos.

Em suas viagens, Guran também encontrou um livro de receitas deixado pelo agudá Cesário de Medeiros, e está traduzindo o texto para editá-lo aqui. Medeiros nasceu no Benim em 1933, e foi viver em Paris na juventude. Lá, casou-se com uma francesa da Bretanha, mas o casamento inter-racial nunca foi aceito pela família dela. Com o sentimento de ter sido um desenraizado durante toda a vida, sempre em busca de uma identidade social, Medeiros e a mulher promoviam encontros entre “a grande família dos agudás radicada na França” e o divertimento deles era preparar pratos tradicionais da cozinha afro-brasileira.
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Álbum de família: Cesário de Medeiros: casamento
inter-racial e pratos afro-brasileiros

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A “feijoadá”, o “cousidou” e outros aspectos da culinária foram pontos da conferência de Guran em Johanesburgo. Antes de embarcar, ele falou de seu interesse pela cultura brasileira que sobrevive no Benim e da curiosidade que ela desperta no mundo.

Valor: O que motivou seu interesse por essas comunidades?

Milton Guran: Quando cheguei para fazer meu doutorado na École des Hautes Études em Sciences Sociales, em 1992, em Paris, me vi em um laboratório africanista. Os estudos africanos, pelo menos na minha área, eram muito mais incipientes no Brasil do que são hoje. Para mim isso representava uma oportunidade de conhecer a África real e de fazer uma pesquisa que há muito deveria ter sido feita. Na verdade, fui o primeiro antropólogo brasileiro a fazer uma pesquisa de fôlego no Benim (com a ressalva de que Pierre Verger era francês, apesar de ser brasileiro de coração). Aliás, até hoje esse quadro continua inalterado, a despeito da importância cultural e política da região. A República do Benim, vale lembrar, é o antigo reino do Daomé, que se notabilizou como um dos maiores exportadores de escravos da África, e foi conquistado militarmente pelos franceses no final do século 19.

Valor: Que importância esse núcleo de pessoas tem lá? Em quantos países se concentram?

Guran: Os agudás representam – ao lado dos Tabon de Gana que, entretanto, não têm a mesma expressão social – o único exemplo de uma identidade social calcada na cultura brasileira longe das nossas fronteiras. Não se trata de uma “colônia” de brasileiros no exterior, mas de um grupo social que usa o pertencimento à cultura brasileira para se articular com o conjunto da sociedade em que está inserido. No Benim são talvez 10 % da população. Estão também solidamente inseridos na Nigéria (vide o livro “Negros Estrangeiros”, da Manuela Carneiro da Cunha) e no Togo, onde o primeiro presidente foi um agudá, Sylvanus Olympio, neto de um traficante de escravos.

Valor: Qual a definição exata de agudás?

Guran: São chamados de “brasileiros” ou “agudás” na região do golfo do Benim todos os descendentes dos escravos libertos que retornaram do Brasil para lá. Também são agudás os descendentes dos traficantes que lá se estabeleceram nos séculos 18 e 19, e seus respectivos escravos. Em suma, todos aqueles que se utilizam da matriz cultural brasileira para se constituírem como um grupo social diferenciado. Na Nigéria, o termo tem acepção mais ampla, chegando a abranger outros grupos, como os libaneses.

Valor: Eles ainda hoje se consideram de alguma forma brasileiros?

Guran: Consideram-se sim, alguns até reivindicam passaporte brasileiro, sem razão de ser. A identidade é uma construção simbólica e eles se consideram “brasileiros” (entre aspas) e assim são considerados pelo restante da população.

Valor: Que hábitos preservaram essencialmente?

Guran: A principal marca dos agudás é o que no Benim se chama “maneiras de branco”, ou seja, uma maneira de ser à Ocidental, que tem a matriz da cultura européia e que só chegou naquela região no final do século 19, depois do estabelecimento dos agudás. É o que chamo de cultura invisível no meu livro. Um conjunto de tradições, que apresenta todos os indicadores de identidade, como os festejos do Nosso Senhor do Bonfim, o folguedo da Burrinha (uma forma arcaica do bumba-meu-boi) e passa até por expressões em português.

Valor: Quais expressões ou palavras em português eles utilizam?

Guran: Atualmente, a principal é “Bom dia, como passou?” e a resposta “Bem, brigado”.

Valor: Essas “maneiras de branco” podem ser entendidas como uma crítica do resto da sociedade para com um grupo que também é negro?

Guran: As “maneiras de branco” são simplesmente as maneiras ocidentais (européias) que se impuseram no Brasil antes de se imporem na África. No século 19, os europeus implantaram sua proposta de colonização, o que tornou essas maneiras de branco um parâmetro para toda a sociedade. Os agudás levaram do Brasil para lá essa experiência cultural. Ao assinalar isso na conduta dos agudás, o resto da sociedade estava justamente corroborando a diferença entre eles e esse grupo de africanos ou de filhos de africanos que se reivindicava diferente, ou seja, agudá e não fon, iorubá, mahi, etc.

Valor: Quais são os pratos brasileiros mais importantes entre essas famílias? Com que freqüência são preparados?

Guran: Os principais são a “feijoadá”, o “cousidou” e a “tapiocá”, todos pronunciados com sotaque francês. Os dois primeiros são os pratos oficiais das reuniões agudás. A “tapiocá”, uma espécie de beiju mole, servido com leite condensado é até mesmo vendida na rua e tem grande aceitação. Há ainda a “concada” (assim, com um “n” no meio), que designa dois tipos de doce: a nossa cocada, feita com coco verde, e o pé-de-moleque que, por sinal, é o mais comum, conhecido como um doce agudá.

Valor: Além da comida vendida nas ruas há restaurantes com essa culinária?

Guran: Que eu saiba não. Esses pratos são tradicionais entre os agudás, não entre a população em geral. O que tem maior consumo e aceitação, reconhecido como uma contribuição agudá é a “concada” na sua versão pé-de-moleque. A “tapioca” também é muito consumida na rua, tendo extrapolado o meio agudá.

Valor: Qual a diferença entre a feijoada, o cozido e a tapioca daqui e de lá? São receitas adaptadas em função dos ingredientes locais?

Guran: O princípio é o mesmo, mas há sempre adaptações. Precisamos levar em conta, também, que a matriz cultural deles lá é proveniente do século 19, no mínimo. Ou seja, talvez a feijoada que eles têm em mente não seja essa que conhecemos hoje. A feijoada deles é com feijão mulatinho e em forma de purê. Há várias carnes, mas nem sempre tem porco, já que há muitos muçulmanos lá. Em contrapartida, o cozido é bem semelhante, e a tapioca é uma espécie de beiju, bem parecida com a que comemos no Nordeste.

Valor: As novas gerações se interessam por essa cultura?

Guran: É difícil generalizar, sobretudo nesta região da África. Há as novas gerações da cidade e do campo, por exemplo, e várias nuances entre a classe média, a elite e o grosso da população. O africano normalmente é muito ligado na cultura ancestral, mesmo quando se mostra mais ocidentalizado. Entre os agudás, os velhos reclamam dos novos, mas ainda assim vejo muita vitalidade nas festas, com forte presença de jovens, sobretudo nas camadas mais populares.

Valor: Como você vê a síntese dessas duas culturas?

Guran: A escravidão é um estigma indelével nas sociedades que produziram os escravos. Essa identidade agudá – construída a partir da memória do tempo vivido no Brasil, ou seja, da própria escravidão – permitiu que antigos escravos e traficantes negreiros se unissem em um único grupo social e assim deu condição a esses libertos de operarem na sociedade que os acolheu de volta como cidadãos de plenos direitos. Essa “engenharia social” – uma espécie de “jeitinho sociológico” – é um caso único, exemplar. Não há outro país além do Brasil que possa contar com um trunfo como esse nas relações bilaterais com os países africanos. A isso se soma o fato de que o Brasil é a segunda população negra do mundo, logo depois da Nigéria. Resumindo, tem tudo a ver conosco.

(Valor Econômico – Caderno: Eu&Fim de semana – 18/07/2008 )

O idioma Banto falado no Brasil

Influência das línguas africanas no idioma Brasileiro

Yeda Pessoa de Castro*

Do século XVI ao século XIX, o tráfico transatlântico trouxe para o Brasil 4 a 5 milhões de falantes africanos extraídos de duas regiões subsaarianas : a região banto, situada ao longo da extensão sul da linha do equador, e a região oeste-africana ou sudanesa, que abrange territórios que vão do Senegal à Nigéria.

A região banto compreende um grupo de 500 línguas muito semelhantes, que são faladas na África sub-equatorial. Entre elas, as de maior número de falantes no Brasil foram três línguas angolanas: quicongo, também falada no Congo, quimbundo e umbundo. Das línguas oeste-africanas ou sudanesas, seus principais representantes no Brasil foram os povos do grupo ewe-fon provenientes de Gana, Togo e Benim, apelidados pelo tráfico de minas ou jejes, e os iorubás da Nigéria e do Reino de Queto (Ketu), estes últimos na vizinha República do Benim, onde são chamados de nagôs.

No entanto, apesar dessa notável diversidade de línguas, todas elas têm uma origem comum. Pertencem a uma só grande família lingüística Níger-Congo (Greenberg 1966). Logo, são todas línguas aparentadas.
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FATOS RELEVANTES
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Explicar a participação de línguas africanas na construção da língua portuguesa no Brasil é ter em conta a atuação do negro-africano como personagem falante no desenrolar dos acontecimentos e procurar entender os fatos relevantes de ordem sócio-econômica e de natureza lingüística que favoreceram o avanço consecutivo do componente africano nesse processo.

Inicialmente, o contingente de negros e afro-descendentes era superior ao número de portugueses e outros europeus, durante três séculos consecutivos, num contexto social e territorial cujo isolamento em que foi mantida a colônia pelo monopólio do comércio externo brasileiro feito por Portugal até 1808 condicionou um ambiente de vida de aspecto conservador e de tendência niveladora, mais aberto à aceitação de aportes culturais mútuos e de interesses comuns. Aqui, merecem destaque a atuação socializadora da mulher negra na função de mãe-preta no seio da família colonial, e o processo de socialização lingüística exercido pelos negros ladinos, aqueles que, aprendendo rudimentos de português, podiam falar a um número maior de ouvintes, e influenciá-los, resultando daí por adaptarem uma língua a outra e estimularem a difusão de certos fenômenos lingüísticos entre os não bilíngües.(Ver Pessoa de Castro 1990).

No século XIX, o processo de urbanização que se iniciava no Brasil a partir da instalação da família real portuguesa no Rio de Janeiro e a abertura dos portos em 1808, exigiram a fixação nas cidades da mão-de-obra escrava recém-trazida da África, numa época em que a maioria da população brasileira era constituída de mestiços e crioulos. Esses, já nascidos no Brasil, falando português como primeira língua, por conseguinte, mais desligados de sentimentos nativistas em relação à África e susceptíveis à adoção e aceitação de padrões europeus então vigentes.

Finalmente, com a extinção do tráfico transatlântico para o Brasil em 1856 até a abolição oficial da escravatura no país em 1888, o tráfico interno foi intensificado. Negros escravizados nas plantações do nordeste foram levados para outras nas regiões do sul e sudeste (depois ocupadas por europeus e asiáticos) e, em direção oposta, do centro-oeste para explorar a floresta amazônica onde os povos indígenas são preponderantes. Em conseqüência, portanto, da amplitude geográfica alcançada por essa distribuição humana, o elemento negro foi uma presença constante em todas as regiões do território brasileiro sob regime colonial e escravista.

No entanto, nesse contexto sócio-histórico, cada língua ou grupo de línguas teve sua influência própria.

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OS BANTOS

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A influência banto é muito mais profunda em razão da antiguidade do povo banto no Brasil, da densidade demográfica e amplitude geográfica alcançada pela sua distribuição humana em território brasileiro.

A sua presença foi tão marcante no Brasil no século XVII que, em 1697, é publicada, em Lisboa, A arte da língua de Angola, do padre Pedro Dias, a mais antiga gramática de uma língua banto, escrita na Bahia para uso dos jesuítas, com o objetivo de facilitar a doutrinação dos 25.000 negros angolanos, segundo Antônio Vieira, que se encontravam na cidade do Salvador sem falar português (Cf. Silva Neto 1963:82).

Os aportes bantos ou bantuismos, ou seja, palavras africanas que entraram para a língua portuguesa no Brasil, estão associados ao regime da escravidão (senzala, mucama, bangüê, quilombo), enquanto a maioria deles está completamente integrada ao sistema lingüístico do português, formando derivados portugueses a partir de uma mesma raiz banto (esmolambado, dengoso, sambista, xingamento, mangação, molequeira, caçulinha, quilombola), o que já demonstra uma antiguidade maior. Em alguns casos, a palavra banto chega a substituir a palavra de sentido equivalente em português: caçula por benjamim, corcunda por giba, moringa por bilha, molambo por trapo, xingar por insultar, cochilar por dormitar, dendê por óleo-de-palma, bunda por nádegas, marimbondo por vespa, carimbo por sinete, cachaça por aguardente. Alguns já estão documentados na literatura brasileira do século XVII, a exemplo dos que se encontram na poesia satírica de Gregório de Matos e Guerra. (1633-1696).
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OS OESTE-AFRICANOS

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Ao encontro dessa gente banto já estabelecida nos núcleos coloniais em desenvolvimento, é registrada a presença de povos ewe-fon, cujo contingente foi aumentado em conseqüência da demanda crescente de mão-de-obra escravizada nas minas de ouro e diamantes, então descobertas em Minas Gerais, Goiás e Bahia, simultaneamente com a produção de tabaco na região do Recôncavo baiano.

Sua concentração, no século XVIII foi de tal ordem em Vila Rica que chegou a ser corrente entre a escravaria local um falar de base ewe-fon, registrado em 1731/41 por Antônio da Costa Peixoto em A obra nova da língua geral de mina, só publicada em 1945, em Lisboa. Também Nina Rodrigues, ao findar do século XIX, teve oportunidade de registrar um pequeno vocabulário jeje-mace (fon) de que ainda se lembravam alguns dos seus falantes na cidade do Salvador, assim como de outras quatro línguas oeste-africanas (acossa, tapa, Gramsci, flane). (Ver Pessoa de Castro 2002).

Ao findar do século XVIII, a cidade do Salvador começa a receber, em levas numerosas e sucessivas, um contingente de povos procedentes da Nigéria atual, em conseqüência das guerras interétnicas que ocorriam na região. Entre eles, a presença nagô-iorubá foi tão significativa que o termo nagô na Bahia começou a ser usado indiscriminadamente para designar qualquer indivíduo ou língua de origem africana no Brasil. Nina Rodrigues mesmo dá notícia de um “dialeto nagô”, que era falado pela população negra e mestiça da cidade do Salvador naquele momento e que ele não documentou, mas definiu como “uma espécie de patois abastardado do português e de várias línguas africanas” (cf. Rodrigues 1942::261). Logo, não se tratava da língua iorubá, como muitos ainda se deixam confundir.

Devido a uma introdução tardia e à numerosa concentração dos seus falantes na cidade do Salvador, os aportes do iorubá são mais aparentes, especialmente porque são facilmente identificados pelos aspectos religiosos de sua cultura e pela popularidade dos seus orixás no Brasil (Iemanjá, Xangô, Oxum, Oxossi, etc.). Por isso mesmo, a investigação sobre culturas africanas no Brasil tem sido baseada nos mais proeminentes candomblés de tradição nagô-queto em Salvador, uma abordagem metodológica que vem sendo observada desde Rodrigues (1945) e que terminou por desenvolver a tendência de interpretar os aportes africanos no Brasil através de uma óptica iorubá, mesmo quando não o são.

No entanto, Rodrigues (1945) também documentou, à sua época, uma dezena de vocábulos das línguas hauçá, tapa (nupe), fulani e grunce, entre alguns dos seus falantes que ainda viviam na cidade do Salvador. Esses povos islamizados, embora ali numericamente minoritários, encontravam-se num centro urbano que lhes permitia uma relativa liberdade e facilitava suas relações interpessoais, numa condição favorável à promoção de revoltas que se sucederam nas primeiras décadas do século XIX, a princípio lideradas por hauçás, povos do grupo lingüístico afro-asiático do norte da Nigéria. A mais importante de todas ocorreu em 1835 e ficou conhecida como Revolta dos Malês, palavra fon e iorubá para dizer muçulmano (REIS, 1988).


O PORTUGUÊS DO BRASIL

Depois de quatro séculos de contato direto e permanente de falantes africanos com a língua portuguesa no Brasil, esse processo de interação lingüística, apoiada por fatores favoráveis de ordem sócio-histórica e cultural, foi provavelmente facilitado pela proximidade relativa da estrutura lingüística do português europeu antigo e regional com as línguas negro-africanas que o mestiçaram. Entre essas semelhanças, o sistema de sete vogais orais (a, e, ê, i, o ê, u) e a estrutura silábica ideal (CV.CV) (consoante vogal.consoante vogal), onde se observa a conservação do centro vocálico de cada sílaba e não há sílabas terminadas em consoante. Essa semelhança estrutural provavelmente precipitou o desenvolvimento interno da língua portuguesa e possibilitou a continuidade da pronúncia vocalizada do português antigo na modalidade brasileira (onde as vogais átonas também são pronunciadas), afastando-a, portanto, do português de Portugal, de pronúncia muito consonantal, o que dificulta o seu entendimento por parte do ouvinte brasileiro, fazendo-lhe parecer tratar-se de outra língua que não a portuguesa (Cf. a pronúncia brasileira *pi.neu, *a.di.vo.ga.do, *su.bi.ma.ri.no em lugar de pneu, a(d).v(o).ga.do, su(b).m(a).ri.no) (V. Pessoa de Castro 2005)
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Nesse processo, o negro banto, pela antiguidade, volume populacional e amplitude territorial alcançada pela sua presença humana no Brasil colônia, ele, como os outros, adquiriu o português como segunda língua, tornando-se agente transformador da língua portuguesa em sua modalidade brasileira e seu difusor pelo território brasileiro sob regime colonial e escravista. Ainda hoje, inúmeros dialetos de base banto são falados como línguas especiais por comunidades negras da zona rural, provavelmente remanescentes de antigos quilombos em diversas regiões brasileiras (V. Queiroz 1998, Vogt e Fry 1996). Ao encontro dessa matriz já estabelecida assentaram-se os aportes do ewe-fon e do iorubá, menos extensos e mais localizados, embora igualmente significativos para o processo de síntese pluricultural brasileira, sobretudo no domínio da religião.

Considerando que o português do Brasil não é um todo, um bloco uniforme, mas um conceito coletivo que se pode desdobrar em níveis, de acordo com as ocasiões, as regiões e as classes sociais, os aportes africanos estão mais ou menos completamente integrados ao sistema lingüístico do português brasileiro segundo os níveis de linguagem socioculturais, enquanto o português de Portugal (antigo e regional) foi ele próprio africanizado, de certa forma pelo fato de uma longa convivência.

A complacência ou resistência face a essas influências recíprocas é uma questão de ordem sóciocultural, e os graus de mestiçagem lingüística coincidem geralmente, mas não de maneira absoluta, com os graus de mestiçagem biológica que ocorrem no Brasil.

Diante dessas evidências, chegamos necessariamente a uma conclusão compatível com as circunstâncias extralingüísticas que foram favoráveis a esse processo: o português do Brasil, naquilo em que ele se afastou do português de Portugal, é, historicamente, o resultado de um movimento implícito de africanização do português e, em sentido inverso, de aportuguesamento do africano sobre uma matriz indígena pré-existente e mais localizada no Brasil. Assim sendo, o português brasileiro descende de três famílias lingüísticas: a família Indo-Européia que teve origem entre a Europa e a Ásia, da qual faz parte a língua portuguesa; a família Tupi, de línguas faladas pelo indígenas brasileiros e que se espalha pela América do Sul; e, por fim, a família Níger-Congo que teve origem na África subsaariana e se expandiu por grande parte desse continente. Conseqüentemente, povos indígenas e povos negros, ambos marcaram profundamente a cultura do colonizador português que se estabeleceu no Brasil, dando origem à uma nova variação da língua portuguesa – mestiça, brasileira.

Regiões de concentração do tráfico para o Brasil

Oeste-africanos:
Ewe-fon (mina-jeje)
1.Gana 2. Togo 3. Benim

Nagô-Iorubá
3. Reino de Queto ( Benim) e 4. Nigéria

Bantos
5. Gabão 6. Congo 7. Congo-Kinshasa 8.Angola 9. Moçambique

*(Yeda Pessoa de Castro é etnolingüista, Doutora em Línguas Africanas pela Universidade Nacional do Zaire, Membro da Academia de Letras da Bahia e professora aposentada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA))
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Leia o artigo na íntegra: